domingo, 19 de janeiro de 2014

Rolezinhos e TV a cabo

Sentado no sofá num domingo à tarde, meu pai sapeia os cem canais disponíveis na TV a cabo aqui de casa. Apesar do ritual melindroso, como se realmente estivesse com dúvida e fosse fazer uma escolha difícil, descansa o controle remoto no colo e pausa naquele típico programa de auditório da TV aberta - o que queria ter feito desde o início. E disfarça, porque eu vivo reclamando, dizendo que tem uma infinidade de coisas mais interessantes para ver. Mas não adianta. É o que ele gosta. Pergunto: para quê pagar por tantas emissoras se sabe que vai assistir só a Globo? Ele fica bravo.

Pensando nisso, olha só, me lembrei dos rolezinhos, amplamente discutidos nos últimos dias. Uma das teorias compartilhadas na rede é de que faltam aparelhos culturais para esses jovens rolezeiros, ou seja, os rolezinhos no shopping têm razão de ser a partir dessa carência. Se a zona leste - vou puxar aqui para as minhas bandas - tivesse dezenas de bibliotecas, cinemas, museus - o que não é ruim, claro - os rolezinhos jamais existiriam, é isso? Primeiro, se houvesse assim tantos lugares culturais não estaríamos falando de periferia. E segundo, rolezinho acontece há tempos, só não incomodava porque estava bem longe do alcance dos olhos da elite.

Moro em uma cidade que não tem shopping. Pergunte para qualquer rapazinho poaense de 15 anos o que ele mais sente falta na cidade. Aposto que shopping seria a primeira palavra. Ou a gente anda um bocado e vai para o shopping de Suzano ou pega o trenzão e vai para Itaquera ou Mogi das Cruzes. Shopping perto de casa é status. Na "minha época" fotos no espelho do banheiro do shopping com as best agregava valor ao seu Orkut. Ir ao shopping mostra que você consome. Lá, pessoas que consomem desfilam para pessoas que consomem. Nós, pobres, não queremos ficar de fora dessa. E quem ensina a gente a consumir é outra história. Mas que é sintomático, sim, é.

O rolezinhos vão continuar? Não sabemos. Mais "canais" de divertimento na região resolveriam? Também não sabemos. Só sei que, enquanto a gente fica criando textos imensos para formular hipóteses inteligentes - e meu pai assiste uma reportagem sobre os bichos de estimação da Kelly Key -, essa galera está é se divertindo muito. Ontem, ao abrir o portão de casa, dois garotos meus vizinhos todos trabalhados no "estilo rolê", sentados no degrau do estabelecimento comercial do meu tio, comentavam assim: "[...] o negócio do rolezinho saiu até no jornal, meu, os cara tão causando e ficando famoso [...]". Pela primeira vez a grande mídia os colocou em pauta - como se vestem, como se comunicam, o que comem, onde moram - e viraram um tipo de "fenômeno", tipo aqueles seres misteriosos de programas do Discovery.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Mesmo assim sorria

Antes de mais nada já vou me desculpando, por amolar vocês, mais uma vez, com essas minhas histórias. É que eu saí de casa hoje e esqueci a carteira em casa, percebi isso quando estava confortavelmente dentro do trem. E pra minha surpresa, não havia saldo no meu bilhete e pra melhorar, perdi o fretado da empresa. Não tinha dinheiro pra prosseguir a viagem com ônibus comum. O jeito foi esperar pelo próximo fretado, que passaria dali 2 horas. Fui me encostar nuns bancos da estação, perto da rodoviária e abri meu livro. Nisso, um passarinho posou e começou a rodopiar pelos assentos. Parei de ler pra contemplar a performance. E divaguei. Eu ali, sem poder me 'mover', presa, porque dependia de mundo, do material. Ele não dependia, tinha nascido com asas, não precisava de extensões. Era pássaro. Pensava, enquanto ele comia migalhas de pão deixadas no chão. Deu a hora, desci correndo, não prevendo a lição que receberia nos próximos segundos. Na rampa que dá acesso a avenida e ao ponto vejo um homem. Um homem empurrando uma cadeira. Um homem empurrando uma cadeira com uma mulher. Um homem empurrando uma cadeira com uma mulher que tinha os pés atrofiados. Um homem empurrando uma cadeira com uma mulher que tinha os pés atrofiados, e que sorria. A cena apertou minha garganta e senti vontade de chorar, e não escrevo isso pra parecer que sou humana, ó. Não. Minha garganta apertava e engoli a saliva dolorosamente. Na minha humanez mesquinha, quis também engolir o choro, por vergonha. Ela tinha os pés atrofiados, e sorria. Ela subia sendo carregada e eu descia a golpes. Eu, que por duas horas me senti prisioneira, reclamei por não ser pássaro, por ter pés mas não poder andar. Aquela mulher tinha os pés atrofiados e não andaria por uma vida, e mesmo assim sorria.

14/08/1966

Nascia a mulher que me faria nascer 24 anos mais tarde e que, aos 36 anos, morreria por complicações no coração. Tinha uma cicatriz no peito. Digo que foi porque nos amava demais e que tinha um coração tão grande que não cabia em si. Ela acenava para mim da janela do hospital, bem alto, e a partir daí acenaríamos uma para outra de distâncias cada vez maiores. Hoje, se viva, estaria com seus 47 anos. A pele branca já estaria um pouco enrugada. Haveriam tímidos riscos brancos no mar de fios lisos e negros de sua cabeça. Os cabelos estariam na altura dos ombros, com uma franja, talvez, que cairia sobre seus olhos quando movimentasse a cabeça. E eu os pentearia, como sempre quis. Não usaria sapatos de salto alto, até porque nunca gostou, e vestiria sobretudos em dias de frio, porque sempre a elogiavam quando os vestia. No calor usaria saias longas de pano molinho com estampas coloridas e calças largas e blusas elegantes, porque sempre teve bom gosto e fazia ótimas combinações. Continuaria trabalhando numa loja de roupas de festas, ou já seria a gerente, ou já teria montado seu próprio negócio e seria uma patroa legal com as funcionárias. Brigaria comigo por ficar tempo demais na internet, por não comer direito e por recusar beterraba. Compraria o jornal quando saísse matéria minha, mesmo que no início tenha relutado quanto à minha intenção de ser um dia jornalista, mas como sempre me apoiaria. Ela teria um Facebook, certeza, pois era popular entre as amigas e gostava de papear e curtiria os meus posts chatos sobre os trens. Teria um celular desses mais tecnológicos e me ligaria todos os dias, mas ainda assim me esperaria chegar da faculdade e me daria um beijo e diria boa noite e só assim dormiria.

E eu a amaria, como sempre, eu a amaria.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Tudo sobre minha mãe



Não, não é aquele filme do Almodóvar. É sobre a minha mãe. Não, na verdade é sobre mim. Porque não consigo mais falar de mim sem falar dela. É ela a minha essência. Então, é sobre nós. 

Talvez, como no filme, o tudo sobre minha mãe é a montanha de coisas que eu não sei, que ficaram perdidas nos anos. Das coisas que eu queria descobrir, mas não pude. 

Quando passei pelas primeiras coisas de mocinha, ela já não estava aqui. Porém, as que se sucederam, são as primeiras nas minhas recordações de infância. 

A nossa primeira viagem para o Rio de Janeiro, no primeiro mês de 2002. Mesmo ano em que comecei a cursar o primeiro ano do ensino fundamental, cujo primeiro dia de aula foi quando recebi a notícia de que ela havia falecido. 

Sem nenhum tipo de relação aparente, isso me faz lembrar da minha primeira surra, no ano anterior. O motivo: porque eu não havia estudado a tabuada, uma vez que prometi, de pés juntos, que decoraria a maldita de cabo a rabo e faria uma apresentação oral para ela.


Minha mãe tinha dado o prazo de uma semana. Na sexta-feira, como combinado, veio ao pé da cama, com a cartilha na mão, correu a língua sobre os lábios e proferiu a primeira sentença: 5x8.
  
Eu não respondi. Ela retrucou:

- 5x8. Quanto é?

Não respondi, baixei a cabeça.

- Você não estudou?

Entreguei os pontos. Não estudei. E arrependida, pedia para dar-me mais uma semana de estudo. Ouvi um não. Agora, não lembro se o cinto do meu pai já estava pendurado no armário do meu quarto ou se ela foi buscá-lo no outro cômodo. Minha condenação: o cinto e o castigo. 

A primeira cintada foi nas pernas, como também os cinco golpes seguidos. Cinco ou mais. Eu gritava, chorava, berrava mesmo. Queria mostrar ao mundo que eu era a coitada e ela o monstro.

Mal sabia eu que ela me fez chorar, aquele par de horas, para eu não precisar chorar depois. Para não precisar levar cintadas da vida, pra não doer uma dor que não pudesse curar. Mal sabia eu que a intenção dela era me fazer chorar tudo, tudo, tudo, ali, e não precisar chorar mais nada. Era para não sobrar gota alguma de lágrima. Era para eu não ser triste, mesmo sem saber tabuada. 

Entre os gritos eu via seus olhos desarmados, enquanto estava armada com o cinto nas mães, fazendo justiça. Via que a dor doía mais nela do que em mim. A mão fazia, mas o coração perdoava. E eu sabia. Cada berro meu era um soco, cada grito agudo uma facada, nela.

Minhas pernas ficaram roxas, por dias. Mas ela é quem ficou ferida. 

No fim das contas, melhorei muito na escola e passei a gostar de matemática. Ganhei até um prêmio singelo de melhor aluna junto com mais outros colegas. 

Meu hematoma  foi conjecturado e curado, ao mesmo tempo, pelo sacrifício dela. Porque ela sentiu a dor por mim. 

Naquele primeiro dia de aula, quando eu soube do que aconteceu, lembrei da surra. Por um momento passou na minha cabeça que lá ela não sentiria mais dor. Por isso quis fugir. Já estava carregada com dores de muita gente.

O coração dela é que estava roxo, não aguentava. Amava muito, mas não respirava. Decidiu parar.

Mas era 40, mãe. 

Era 40.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

O exército e a estranha

Eu voltava pela rua. Pela mesma rua que passo todos os dias, mas não no mesmo horário. Passo pelo posto de gasolina, pelo, bar, pela igreja... E é perto da igreja, que, a minha frente, vejo um casal de evangélicos caminhar, com duas meninas. Aliás, não lembro se era uma menina e um menino, na verdade. O homem era negro e levava um paletó cinza, visivelmente de um número bem maior do que o do seu manequim, com uma camisa preta e uma gravata branca. Como disse, nos filhos não reparei e da mulher, só me recordo do rosdo e parte do casaco, bege. Recordo do rosto, mais precisamente dos olhos. Eu, com meus fones de ouvido, ando cantoralando, enquanto aquela espécie de exército em quarteto vinha em minha direção. Os passos deles eram sincronizados e bruscos. Pareciam soldados. A luz da lâmpada amarela brilhava atrás e as sombras chegavam antes. Então, o momento. Sabe como nos filmes, a câmera fica lenta e cria-se aquela tensão entre as pessoas que se cruzam? Foi assim, quando eles passaram por mim. Mas o mais curioso é que aquela mulher me olhava. Diferente. Eu me espantei porque a gente se acostuma a não ser notado, a passar sempre despercebido. Ela reparou em mim, talvez pela minha blusa verde chamativa ou pelo meu cabelo desarrumado. Não. Ela reparou em mim, e eu, sei lá, me senti estranha, num lugar que, aparetemente, eu dominava, conhecia, fazia parte. Lógico, eu passo sempre lá, a rua era minha. Quem era aquele povo? Parecia estar numa terra estranha. Tornei-me aquela pessoa que chega de longe e é visto aos olhares críticos. Boa, má. Mas aquela mulher de bege, negra, de olhos negros, me olhava. Tudo bem, não era um olhar de repulsa. Era um olhar de quem queria dizer algo. Bom, ruim. Daí o clímax ficou ainda mais atenuado quando notei que a música soando nos fones de ouvido chamava-se "Strangeland". Trilha sonora perfeita para a cena que acabara de ocorrer. E eu a olhei também, porque nao queria ser a única estranha ali. 


Strangeland blind,
You got no reason, you got no rhyme,
You get no time to put things right,
To put things right.



sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Nota sobre o cômodo

Em 2012 coube tanta coisa, e todo o 2012 coube dentro do coração. E ainda sobrou lugar. Sobrou porque dei a você. Dei a você um cômodo inteiro, mais sala, cozinha e ainda dividi uma gaveta do meu armário. Se quisesse você ficaria até com o quarto. Dei, sem pensar, porque a sua estadia era eu quem queria pagar. Eu pagava e você ficava, eu é que me cobrava. Mas você se cansou de morar cá dentro, deve ser porque te dei espaço logo de cara. Mas eu também fui tola, abri a porta e lhe dei as chaves de casa. Fui tola. Devia era ter de dado o quartinho empoeirado. Não, devia era ter dado só um colchão pra tu dormir no sotão. Lá, onde fica tudo que é esquecido. Quem sabe assim você não sentia falta dos ares da casa, das janelas, do sol comprido entrando pelo vidro. Quem sabe assim você não armava sua rede no quintal, pra ver as manhãs, comigo. Aliás, nem devia era ter te convidado pra morar aqui. Esqueci que a porta só fechava por dentro. Então você foi. Mas se eu pudesse te prendia lá. Você não quis mais morar no barulho do músculo, no afago e palpitação ora lenta e acelerada que a tua presença na casa despertava. Meu coração parou de bater porque você bateu foi suas asas. Voou. Quis morar noutros cantos, e levou a chave. Mas espero que o verão passe e que você também passe. Passe feito nuvem, chuva, tempestade. Porque se voltar um dia, saiba que troquei a fechadura e que a porta agora é uma grade.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Desculpas

Desculpe pela promessa que fiz em 2011, dizendo que 2012 seria um ano melhor.

Desculpe ter que fazer essa mesma promessa para 2013.

Desculpe ter feito promessas.

Desculpe ter esquecido compromissos.

Desculpe pelo abraço que não dei.

Desculpe pelo beijo que recusei. 

Desculpe não ter amado mais.

Desculpe ter dito mais não do que sim. 

Desculpe por todos as noites que dormi tarde e perdi o pôr do sol. 

Desculpe, porém, por não ter perdido mais tempo sonhando.  

Desculpe por todas as chuvas que não me molhei.

Desculpe, aliás, por todos os guarda-chuvas que não compartilhei.

Desculpe por, às vezes, não ter ido pelo caminho mais longo.

Desculpe por ter me atrasado. 

Desculpe por todas as ocasiões em que segurei o choro, por vergonha.

Desculpe não sorrir o quanto deveria. 

Desculpe por rir daquilo que não convinha. 

Desculpe não ter escrito mais textos, mais poemas.

Desculpe, mas escrever é difícil.

Desculpe por não ter lido mais livros.

Desculpe não ter ido em mais shows, ou não. 

Desculpe ter visto filmes demais.

Desculpe ter ido ao cinema só pela companhia, quando bem poderia ir sozinha.

Desculpe gostar de Woody Allen.

Desculpe não ter conhecido novos músicos e novas músicas o suficiente.  

Desculpe preferir Chico a Caetano.

Desculpe eu não entender de arte, de klimt.

Desculpe conhecer Frida Kahlo só por causa do filme.

Desculpe eu não ser popular, nem cult.

Desculpe não ser como você, sou classe C.

Desculpe assistir TV, e gostar.

Desculpe não responder no chat do Facebook.

Desculpe passar tempo demais conectada na internet.

Desculpe passar tempo de menos ao telefone.

Desculter ter celular só para ver as horas.

Desculpe não ter viajado mais, é porque eu não tinha dinheiro mesmo.

Desculpe ter que precisar de dinheiro.

Desculpe ter 22 anos. 

Desculpe ter milhões de coisas para me desculpar.

Desculpe estar com preguiça.

Desculpe parar por aqui.

Desculpe as desculpas. 

Desculpe a repetição.

Desculpe, enfim.