sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Mesmo assim sorria

Antes de mais nada já vou me desculpando, por amolar vocês, mais uma vez, com essas minhas histórias. É que eu saí de casa hoje e esqueci a carteira em casa, percebi isso quando estava confortavelmente dentro do trem. E pra minha surpresa, não havia saldo no meu bilhete e pra melhorar, perdi o fretado da empresa. Não tinha dinheiro pra prosseguir a viagem com ônibus comum. O jeito foi esperar pelo próximo fretado, que passaria dali 2 horas. Fui me encostar nuns bancos da estação, perto da rodoviária e abri meu livro. Nisso, um passarinho posou e começou a rodopiar pelos assentos. Parei de ler pra contemplar a performance. E divaguei. Eu ali, sem poder me 'mover', presa, porque dependia de mundo, do material. Ele não dependia, tinha nascido com asas, não precisava de extensões. Era pássaro. Pensava, enquanto ele comia migalhas de pão deixadas no chão. Deu a hora, desci correndo, não prevendo a lição que receberia nos próximos segundos. Na rampa que dá acesso a avenida e ao ponto vejo um homem. Um homem empurrando uma cadeira. Um homem empurrando uma cadeira com uma mulher. Um homem empurrando uma cadeira com uma mulher que tinha os pés atrofiados. Um homem empurrando uma cadeira com uma mulher que tinha os pés atrofiados, e que sorria. A cena apertou minha garganta e senti vontade de chorar, e não escrevo isso pra parecer que sou humana, ó. Não. Minha garganta apertava e engoli a saliva dolorosamente. Na minha humanez mesquinha, quis também engolir o choro, por vergonha. Ela tinha os pés atrofiados, e sorria. Ela subia sendo carregada e eu descia a golpes. Eu, que por duas horas me senti prisioneira, reclamei por não ser pássaro, por ter pés mas não poder andar. Aquela mulher tinha os pés atrofiados e não andaria por uma vida, e mesmo assim sorria.

14/08/1966

Nascia a mulher que me faria nascer 24 anos mais tarde e que, aos 36 anos, morreria por complicações no coração. Tinha uma cicatriz no peito. Digo que foi porque nos amava demais e que tinha um coração tão grande que não cabia em si. Ela acenava para mim da janela do hospital, bem alto, e a partir daí acenaríamos uma para outra de distâncias cada vez maiores. Hoje, se viva, estaria com seus 47 anos. A pele branca já estaria um pouco enrugada. Haveriam tímidos riscos brancos no mar de fios lisos e negros de sua cabeça. Os cabelos estariam na altura dos ombros, com uma franja, talvez, que cairia sobre seus olhos quando movimentasse a cabeça. E eu os pentearia, como sempre quis. Não usaria sapatos de salto alto, até porque nunca gostou, e vestiria sobretudos em dias de frio, porque sempre a elogiavam quando os vestia. No calor usaria saias longas de pano molinho com estampas coloridas e calças largas e blusas elegantes, porque sempre teve bom gosto e fazia ótimas combinações. Continuaria trabalhando numa loja de roupas de festas, ou já seria a gerente, ou já teria montado seu próprio negócio e seria uma patroa legal com as funcionárias. Brigaria comigo por ficar tempo demais na internet, por não comer direito e por recusar beterraba. Compraria o jornal quando saísse matéria minha, mesmo que no início tenha relutado quanto à minha intenção de ser um dia jornalista, mas como sempre me apoiaria. Ela teria um Facebook, certeza, pois era popular entre as amigas e gostava de papear e curtiria os meus posts chatos sobre os trens. Teria um celular desses mais tecnológicos e me ligaria todos os dias, mas ainda assim me esperaria chegar da faculdade e me daria um beijo e diria boa noite e só assim dormiria.

E eu a amaria, como sempre, eu a amaria.