Lembro-me de um
episódio de quando a minha mãe era viva e eu ainda recebia conselhos a beira da
cama. Eu tinha por volta dos 10 anos de idade, já era noite naquele dia. Foi,
talvez, o choro mais memorável da minha vida.
Pode parecer
absurdo, mas eu chorava porque tinha cabelos cacheados. Chorava porque os odiava.
Chorava porque não queria tê-los. E não
era um choro qualquer. Eram lágrimas torrenciais. Lágrimas que pesavam, molhavam
feito garoa e inundavam como tempestade. Elas saltavam dos meus pequenos olhos
castanhos, ardentes, para percorrerem a maçã e a bochecha e então, libertas, pingarem
num canto qualquer da roupa - se antes disso os finos dedos da minha mãe não as
enxugasse e as roubasse do meu rosto quente.
Era um choro de
bebê quando a mãe esconde a chupeta, de adolescente quando está apaixonado, de adulto
quando está arrependido e de velho quando não quer mais ser velho.
Minha mãe não
sabia muito o que dizer. Ah! Seus cabelos eram lisos! Os mais lisos que eu
conhecia. Eram lisos e lindos! De um liso que brilhava, mas brilhava tanto, que
me cegava de amor. Ela sim, tinha os cabelos que eu queria ter. Eu queria a lisura de minha mãe. Mas,
incrivelmente, ao invés de culpá-la por isso, eu a endeusava ainda mais, a
amava ainda mais. Ela era o que eu queria ser e não era.
Minha atividade
mais prazerosa era pentear os cabelos negros, lisos e lindos da dona Marta. O pente
corria, descia e subia, sem nenhum grunhido - os meus não. Os acariciava como
se fossem meus - só meus - tão mais meus do que dela.
Eu dizia:
- Mãe, vamos
trocar de cabelo? Dou-te os meus e fico com os seus.
Ela, com voz de
mulher grande e delicada, respondia:
- Claro que eu
trocaria. Seus cabelos são lindos. Por que não fica você com eles?
Não. Eu não
queria ficar com eles. O fato é que eu sentia raiva, não exatamente das minhas
madeixas onduladas, mas de todos os outros cabelos lisos de meninas que não
eram eu. Elas desfilavam com aqueles rabões de cavalo, esvoaçantes. Não. Não
era inveja - ou até seria... Isso me corroía. Eu me sentia feia.
As mãos da minha
mãe, as únicas e inesquecíveis mãos, andavam por mim e me consolavam naquela noite
de choro. Aquelas mesmas mãos que me faziam dormir, apalpando os cabelos que eu
odiava. Mãos que me faziam ser criança - para sempre.
Ela me tocava dizendo
que eu era especial. Dos seus lábios eu ouvia que se um pequenino detalhe meu
fosse arrancado ela iria reclamar com Deus. A menina dos cabelos feios fora o
melhor presente dela. A menina dos cabelos feios não devia chorar porque era
perfeita, dizia.
Não sei como
aconteceu. No dia seguinte tudo estava esquecido. Os anos se passaram e cá estou eu com meus cabelos enrolados. Mas, se
hoje eu fosse chorar por algo, choraria pelos cabelos lisos que tive, mas que
estavam colados em outra cabeça.
Choraria pelos cabelos de minha mãe.
Choraria por cada longo e fino fio deles.
Choraria pelos cabelos de minha mãe.
Choraria por cada longo e fino fio deles.
Choraria porque, agora, eles não existem mais.