terça-feira, 14 de agosto de 2012

Os cabelos lisos que eu nunca tive


Lembro-me de um episódio de quando a minha mãe era viva e eu ainda recebia conselhos a beira da cama. Eu tinha por volta dos 10 anos de idade, já era noite naquele dia. Foi, talvez, o choro mais memorável da minha vida.

Pode parecer absurdo, mas eu chorava porque tinha cabelos cacheados. Chorava porque os odiava. Chorava porque não queria tê-los.  E não era um choro qualquer. Eram lágrimas torrenciais. Lágrimas que pesavam, molhavam feito garoa e inundavam como tempestade. Elas saltavam dos meus pequenos olhos castanhos, ardentes, para percorrerem a maçã e a bochecha e então, libertas, pingarem num canto qualquer da roupa - se antes disso os finos dedos da minha mãe não as enxugasse e as roubasse do meu rosto quente.

Era um choro de bebê quando a mãe esconde a chupeta, de adolescente quando está apaixonado, de adulto quando está arrependido e de velho quando não quer mais ser velho.

Minha mãe não sabia muito o que dizer. Ah! Seus cabelos eram lisos! Os mais lisos que eu conhecia. Eram lisos e lindos! De um liso que brilhava, mas brilhava tanto, que me cegava de amor. Ela sim, tinha os cabelos que eu queria ter. Eu queria a lisura de minha mãe. Mas, incrivelmente, ao invés de culpá-la por isso, eu a endeusava ainda mais, a amava ainda mais. Ela era o que eu queria ser e não era.

Minha atividade mais prazerosa era pentear os cabelos negros, lisos e lindos da dona Marta. O pente corria, descia e subia, sem nenhum grunhido - os meus não. Os acariciava como se fossem meus - só meus - tão mais meus do que dela. 

Eu dizia:

- Mãe, vamos trocar de cabelo? Dou-te os meus e fico com os seus.

Ela, com voz de mulher grande e delicada, respondia:

- Claro que eu trocaria. Seus cabelos são lindos. Por que não fica você com eles?

Não. Eu não queria ficar com eles. O fato é que eu sentia raiva, não exatamente das minhas madeixas onduladas, mas de todos os outros cabelos lisos de meninas que não eram eu. Elas desfilavam com aqueles rabões de cavalo, esvoaçantes. Não. Não era inveja - ou até seria...  Isso me corroía. Eu me sentia feia.

As mãos da minha mãe, as únicas e inesquecíveis mãos, andavam por mim e me consolavam naquela noite de choro. Aquelas mesmas mãos que me faziam dormir, apalpando os cabelos que eu odiava. Mãos que me faziam ser criança - para sempre.

Ela me tocava dizendo que eu era especial. Dos seus lábios eu ouvia que se um pequenino detalhe meu fosse arrancado ela iria reclamar com Deus. A menina dos cabelos feios fora o melhor presente dela. A menina dos cabelos feios não devia chorar porque era perfeita, dizia.

Não sei como aconteceu. No dia seguinte tudo estava esquecido.  Os anos se passaram e cá estou eu com meus cabelos enrolados. Mas, se hoje eu fosse chorar por algo, choraria pelos cabelos lisos que tive, mas que estavam colados em outra cabeça. 

Choraria pelos cabelos de minha mãe. 
Choraria por cada longo e fino fio deles. 
Choraria porque, agora, eles não existem mais.