sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Tudo sobre minha mãe



Não, não é aquele filme do Almodóvar. É sobre a minha mãe. Não, na verdade é sobre mim. Porque não consigo mais falar de mim sem falar dela. É ela a minha essência. Então, é sobre nós. 

Talvez, como no filme, o tudo sobre minha mãe é a montanha de coisas que eu não sei, que ficaram perdidas nos anos. Das coisas que eu queria descobrir, mas não pude. 

Quando passei pelas primeiras coisas de mocinha, ela já não estava aqui. Porém, as que se sucederam, são as primeiras nas minhas recordações de infância. 

A nossa primeira viagem para o Rio de Janeiro, no primeiro mês de 2002. Mesmo ano em que comecei a cursar o primeiro ano do ensino fundamental, cujo primeiro dia de aula foi quando recebi a notícia de que ela havia falecido. 

Sem nenhum tipo de relação aparente, isso me faz lembrar da minha primeira surra, no ano anterior. O motivo: porque eu não havia estudado a tabuada, uma vez que prometi, de pés juntos, que decoraria a maldita de cabo a rabo e faria uma apresentação oral para ela.


Minha mãe tinha dado o prazo de uma semana. Na sexta-feira, como combinado, veio ao pé da cama, com a cartilha na mão, correu a língua sobre os lábios e proferiu a primeira sentença: 5x8.
  
Eu não respondi. Ela retrucou:

- 5x8. Quanto é?

Não respondi, baixei a cabeça.

- Você não estudou?

Entreguei os pontos. Não estudei. E arrependida, pedia para dar-me mais uma semana de estudo. Ouvi um não. Agora, não lembro se o cinto do meu pai já estava pendurado no armário do meu quarto ou se ela foi buscá-lo no outro cômodo. Minha condenação: o cinto e o castigo. 

A primeira cintada foi nas pernas, como também os cinco golpes seguidos. Cinco ou mais. Eu gritava, chorava, berrava mesmo. Queria mostrar ao mundo que eu era a coitada e ela o monstro.

Mal sabia eu que ela me fez chorar, aquele par de horas, para eu não precisar chorar depois. Para não precisar levar cintadas da vida, pra não doer uma dor que não pudesse curar. Mal sabia eu que a intenção dela era me fazer chorar tudo, tudo, tudo, ali, e não precisar chorar mais nada. Era para não sobrar gota alguma de lágrima. Era para eu não ser triste, mesmo sem saber tabuada. 

Entre os gritos eu via seus olhos desarmados, enquanto estava armada com o cinto nas mães, fazendo justiça. Via que a dor doía mais nela do que em mim. A mão fazia, mas o coração perdoava. E eu sabia. Cada berro meu era um soco, cada grito agudo uma facada, nela.

Minhas pernas ficaram roxas, por dias. Mas ela é quem ficou ferida. 

No fim das contas, melhorei muito na escola e passei a gostar de matemática. Ganhei até um prêmio singelo de melhor aluna junto com mais outros colegas. 

Meu hematoma  foi conjecturado e curado, ao mesmo tempo, pelo sacrifício dela. Porque ela sentiu a dor por mim. 

Naquele primeiro dia de aula, quando eu soube do que aconteceu, lembrei da surra. Por um momento passou na minha cabeça que lá ela não sentiria mais dor. Por isso quis fugir. Já estava carregada com dores de muita gente.

O coração dela é que estava roxo, não aguentava. Amava muito, mas não respirava. Decidiu parar.

Mas era 40, mãe. 

Era 40.

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